
Chamavam-na de gorda, uma desgraça. Diziam que ninguém a amava, e que por isso o próprio pai a entregou a um escravo como castigo. Mas o que ninguém sabia era que ele a amava como nenhum homem branco jamais a amara. E o que ela descobriu na casa dele mudou tudo. Um segredo enterrado e uma traição que destruíram duas famílias.
Os salões do palácio de Villarreal eram dourados, frios e cruéis. As paredes refletiam a luz dos lustres como se o próprio luxo zombasse daqueles que não a ele pertenciam.
No centro do grande salão de baile, vestidos rodopiavam como redemoinhos coloridos, acompanhados por risos suaves e olhares furtivos. O som dos saltos ecoava no chão de mármore branco. Era uma noite de gala, uma noite de aparências, de mentiras. E entre todos os rostos pintados com uma beleza forçada, lá estava ela, Dona Estela Alvarado de Montiel, filha do Duque Álvaro, neta de generais, herdeira de sangue azul e uma figura nada convencional.
Estela não passava despercebida, mas não pelos motivos que uma dama desejaria. Seus vestidos eram sempre feitos sob medida, esvoaçantes, bordados com flores tímidas, como se tentassem ocultar em vez de realçar. Seus cabelos eram abundantes, escuros, trançados com fitas discretas, e seu rosto verdadeiramente belo era ignorado porque sua silhueta ocupava mais espaço do que olhares maldosos podiam tolerar. Naquela noite, Estela caminhou pelo salão de baile com passos contidos.
Ela sabia que a estavam observando. Sabia que cada riso abafado poderia ser sobre ela, mas manteve a compostura. O que ela não esperava era a crueldade que estava por vir. Um grupo de jovens condes conversava perto da fonte de mármore, entre eles Dom Julián, o homem que seu pai havia discretamente sugerido como possível pretendente.
“Ouvi dizer que seu pai está planejando casá-lo com a senhorita Estela”, provocou um dos amigos. Julián deu um sorriso zombeteiro e respondeu: “Em voz alta o suficiente para todos ouvirem. Eu só me casaria com ela se fosse para carregar os mantimentos do castelo ou para me proteger de balas. Com o meu tamanho, nem preciso de guarda-costas.” Uma gargalhada irrompeu, e a gargalhada doía mais do que tudo. Estela estava a poucos passos de distância. Ela parou.
Ela fingiu não ouvir, mas seus olhos se encheram de lágrimas. Seu coração afundou como o de um pássaro ferido. O salão continuava girando, mas dentro dela o tempo parou, e foi nesse silêncio interior que ela viu seu pai, o Duque Álvaro, no extremo oposto do salão, observando a cena.
Ele não fez nada, não se aproximou dela, não a defendeu, apenas virou o rosto como se nada tivesse acontecido. Naquela noite, Estela não dançou. Ela apenas esperou o momento certo para subir ao quarto, tirar o vestido apertado, soltar os cabelos e olhar para o espelho oval que a acompanhava desde a infância. Passou os dedos pelo rosto. Observou o que todos pareciam rejeitar.
A doçura em seus olhos, a firmeza de seu queixo, os contornos suaves de suas mãos. Ela não se odiava, mas o mundo parecia determinado a ensiná-la a se odiar. Na manhã seguinte, foi convocada para a grande sala de estar da casa. Seu pai estava sentado ereto na cadeira de encosto alto, ladeado por conselheiros e pela governanta.
Sua expressão era gélida, desprovida de afeto, sem remorso. “Estela”, disse ele secamente, “algumas decisões precisam ser tomadas friamente. Você não trouxe nenhuma honra ao nosso nome, mas talvez ainda possa ser útil.” Ela franziu a testa. O que ele queria dizer com isso? A coroa precisa recompensar um homem por serviços prestados. Um escravo. Sim, um escravo.
Ele salvou a vida de um visconde em uma missão. O rei deseja recompensá-lo com uma companheira, uma mulher. O sangue de Estela gelou. “E o que isso tem a ver comigo?” O pai finalmente ergueu os olhos. “Você será essa recompensa.” O mundo desmoronou. “Isso é um castigo”, sussurrou ela, tentando manter a compostura. “É o destino”, respondeu ele com a frieza de quem jamais reconheceu a própria filha.
Naquela tarde, Estela não chorou, gritou ou implorou; simplesmente subiu ao seu quarto, pegou a fita vermelha que sua mãe usara nos cabelos antes de morrer e a amarrou em si mesma. Ela sabia que sua vida estava sendo vendida como moeda de troca, mas mesmo assim escolheu sair de cabeça erguida. No dia seguinte, ao entardecer, Estela foi levada até a fronteira das terras reais.
Ali, uma pequena casa de pedra e madeira a aguardava, e em frente a ela estava Baltazar, alto, forte, com pele cor de cobre, olhos profundos e destemido. Ela desceu da carruagem sem dizer uma palavra. Esperava zombaria, desprezo, mas ele apenas inclinou a cabeça e disse: “Bem-vinda”. E naquele gesto simples, Estela sentiu o início de uma história que o mundo não estava preparado para ouvir. A carruagem partiu antes mesmo que a poeira baixasse.
Não houve despedida, nem aceno de mão, nem olhar de compaixão. Estela ficou ali parada, os pés afundando levemente na terra seca do caminho. Seu vestido de linho bege, com bordados simples, balançava ao vento que trazia o aroma de madeira velha e folhas queimadas.
O céu acima estava pesado, carregado de nuvens que pareciam conter lágrimas que o mundo se recusava a derramar. Diante dela, erguia-se uma pequena casa solitária de pedra escura e telhado de barro, com janelas estreitas e uma porta de madeira desgastada pelo tempo. Um discreto varal com lençóis brancos balançava contra a parede, e do outro lado, uma fileira de flores secas pendia de cabeça para baixo, exalando uma fragrância terrosa, suave e inesperadamente delicada.
Ela não sabia o que esperar, mas certamente não esperava aquilo. A casa era humilde. Sim. Mas havia ordem, cuidado, como se cada pedra tivesse sido colocada intencionalmente, como se o próprio espaço dissesse: “Aqui não há luxo, mas há dignidade”. Então Baltazar apareceu.
Ele saiu de casa carregando uma pequena cesta de lenha. Vestia uma camisa de algodão gasta, calças amarradas na cintura com uma corda simples e estava descalço. Sua pele era escura e firme, como o tronco de uma árvore antiga. Seu olhar era profundo, desconfortavelmente calmo. Quando a viu, parou.
Ele a olhou de cima a baixo, não com julgamento, mas com curiosidade silenciosa, com cautela, como alguém que avalia o vento antes de dar o primeiro passo. E então disse: “A casa é sua, se quiser entrar. Só isso, sem ironia, sem desprezo.” Estela hesitou. Seu coração disparou, a respiração ficou presa na garganta, como a de um pássaro engaiolado, mas ela caminhou. Cada passo era um desafio, cada movimento um lembrete de que não estava ali por escolha própria.
Ao entrar, ela sentiu cheiro de fumaça de lenha, chá de folhas secas e algo assado — talvez milho, talvez raízes. A casa era dividida em dois cômodos. Na sala de estar, uma mesa de madeira com duas cadeiras. Um banco coberto com um pano listrado, prateleiras com potes de barro e uma esteira enrolada em um canto. No outro cômodo, uma pequena cama com cobertores escuros e um baú fechado. “Você pode dormir ali?”, perguntou ele, apontando para o cômodo menor.
Estela apenas assentiu com a cabeça. Ela ainda não conseguia encontrar a voz. Baltazar voltou para a cozinha. Acendeu o fogo com movimentos firmes e silenciosos. Preparou uma infusão com folhas verdes. O som da água fervendo era o único ruído. “Você está com fome?”, perguntou ele. Estela abriu a boca e a fechou. Finalmente, respondeu: “Não sei”.
Baltazar colocou um prato com um pedaço de pão e raízes cozidas sobre a mesa. Depois, afastou-se sem se sentar. Ela aproximou-se, sentou-se e comeu devagar. A comida era simples, mas bem preparada. Isso também a intrigou. Ela esperava abandono, indiferença, talvez até humilhação, mas encontrou espaço. Naquela noite, ficou deitada na cama com os olhos abertos.
Ouvindo o vento bater na parede externa, ela ouviu os passos leves de Baltazar no outro cômodo. Nada mais, nenhuma outra tentativa, nenhuma palavra adicional. Ela apertou o cobertor contra o peito, lembrando-se das palavras do pai, uma moeda de troca. E agora lá estava ela, numa casa de pedra, ao lado de um homem que a via, mas não a consumia; que a notava, mas não a julgava.
No meio da noite, ela acordou com o som da chuva. As gotas tamborilavam no telhado de barro. Estela levantou-se devagar e caminhou até a janela. Lá fora, a luz da lamparina iluminava o rosto de Baltazar, que estava sentado na varanda, olhando para a escuridão como se conversasse com ela.
Ela ficou ali imóvel, observando-o de longe, e naquele instante algo sussurrou dentro dela. Não era medo nem raiva, era algo mais, uma nova inquietação, como se alguém a estivesse tratando como igual pela primeira vez, não como um fardo, não como uma vergonha, não como um castigo, mas como uma presença. Ela voltou para a cama, fechou os olhos com força e pensou: se ele não me odeia, por que dói tanto? O silêncio de Baltazar era um espelho, e nele havia tantas rachaduras.
Mas ali, na casa simples da escrava, a primeira semente de uma nova história estava sendo plantada. Uma história onde talvez, apenas talvez, ela não fosse apenas o que diziam que ela era. O silêncio da aurora era denso, quase sólido. Um véu escuro cobrindo o mundo. Grilos cantavam à distância.
Interrompida de vez em quando pelo crepitar da lenha no fogão, que ainda continha uma lasca de brasa, a pequena casa dormia. Mas lá dentro, Estela permanecia acordada sobre o colchão rústico, o corpo imóvel, o coração acelerado. O lençol grudava em sua pele úmida, seus pensamentos corriam, seu orgulho fervilhava; ela precisava sair dali. Não suportava mais o contraste entre o que sentia e o que via.
Como aquele homem, um escravo, podia tratá-la com mais dignidade do que sua própria família? Como seu silêncio podia dizer tanto e, ao mesmo tempo, ser insuportável? Era como se ele visse o que ela mesma tentava esconder. Naquela noite, ela se levantou em silêncio. O chão frio recebeu seus pés descalços como gelo.
Ela pegou o xale que estava pendurado atrás da porta. Lentamente, abriu a pequena porta lateral. Ficava nos fundos da casa. Lá fora, o vento cortava. A escuridão envolvia tudo com uma força ancestral. As árvores sussurravam inquietas. O chão de terra batida, ainda úmido da chuva, rangia sob seus passos. Mas ela não olhou para trás. Caminhou devagar a princípio, depois mais rápido.
Suas mãos tremiam, seu xale escorregou do ombro, o frio penetrava pelas frestas de suas roupas, mas ela continuou como alguém que foge não apenas de um lugar, mas de si mesma. A trilha lamacenta levava a um antigo caminho de caçadores, um corredor de árvores retorcidas onde a lua mal conseguia penetrar; o piar das corujas, o farfalhar de pequenos animais, tudo criava uma sinfonia de tensão. Mas ela não parou. Estela correu.
Ela fugia de uma gentileza que não compreendia. Fugia do próprio reflexo no espelho da casa. Fugia da lembrança do riso dos nobres e da serenidade nos olhos de Baltazar. Foi então que o mundo escureceu: um galho solto sob seus pés, um escorregão, um som agudo e a queda. Seu corpo rolou pela encosta úmida.
A lama grudava em seu vestido. O impacto com o chão lhe tirou o fôlego. Sua cabeça bateu em uma pedra, um baque surdo. O mundo girou. O céu pareceu virar de cabeça para baixo, e então, o vazio. Quando seus olhos se abriram novamente, o mundo estava embaçado, o cheiro de terra molhada, sangue seco e lenha.
Sua testa latejava, seus braços doíam, mas sua pele estava quente. Alguém a carregava. Baltazar. Ele a segurava com firmeza, o rosto sério, a respiração ofegante. Estava coberto de suor, lama e alívio. Chegaram à casa. Ele a deitou delicadamente na cama. Passou um pano úmido em sua testa. A água estava morna, o gesto, suave. A alma de Estela tremia mais do que seu corpo.
“Por quê?”, murmurou ela, com a voz fraca como uma folha ao vento. Baltazar olhou para ela. Seus olhos eram profundos, cansados, mas cheios de significado. “Porque você me foi dada”, respondeu ele suavemente. “E eu não rejeito com respeito o que a vida me traz.” Ela desviou o rosto, lágrimas escorrendo silenciosamente. Ele saiu. Voltou minutos depois com um pano limpo, uma tigela de raízes trituradas e mel morno.
Ele a alimentava em silêncio, com cuidado, como se estivesse cuidando de algo precioso. Nos dias seguintes, Estela foi enfraquecendo. Febre e calafrios vieram, mas Baltazar estava sempre presente. Ele trocava suas compressas, preparava sopas, sussurrava palavras que ela não entendia em uma língua ancestral, e cada gesto derrubava mais uma barreira. As crianças da aldeia deixavam flores na janela.
Um senhor idoso trouxe um cobertor novo, uma mulher anônima, um pote de geleia de abóbora. Mesmo em seu repouso, Estela começou a ver, a perceber. O mundo lá fora era cruel, sim, mas também era composto por pessoas carinhosas. Certa manhã, ao acordar, encontrou uma escultura de madeira sobre a mesa ao lado da cama.
Era uma mulher de olhos fechados e mãos sobre o peito, e abaixo dela, escrito em caligrafia rústica: “Corpo grande, alma imensa”. Estela chorou. Chorou porque ninguém jamais havia falado com ela daquela maneira. Chorou porque o que a curou não foi a sopa nem o resto, mas o cuidado, e talvez tenha sido o início do amor.
O tempo passava lentamente na casa de pedra, como se o relógio tivesse se rendido ao ritmo do vento, ao cheiro de lenha queimando e ao canto dos pássaros que vinham entoar pela manhã. Estela acordou com o sol tocando sua pele. O calor suave entrava pela estreita janela, aquecendo suas bochechas mesmo antes de ela abrir os olhos. Havia algo de novo nesse despertar.
Não havia gritos, nem ordens, nem pressa, apenas o aroma do café de milho torrado vindo da cozinha e o som do fogo sendo avivado. Baltazar já estava de pé. Ele sempre estava. Não fazia barulho, não falava alto. Mas sua presença preenchia a casa. Era como uma árvore firme, silenciosa e viva. Cozinhava com atenção, remendava as próprias roupas, arranjava ervas em pequenos ramos que pendurava nas janelas.
E quando cruzava com Estela no corredor, simplesmente perguntava: “Dormiu bem?”. Ela apenas assentia. Ainda não sabia como reagir a tanta tranquilidade. Durante a primeira semana, Estela apenas observou. Seu mundo sempre fora feito de veludo, salas de estar frias e criados que baixavam o olhar. Agora, ela via beleza no chão de terra batida, no apito da chaleira, no gesto delicado com que Baltazar lavava as mãos antes de tocar nos feijões. A simplicidade não era feia; era pura.
É verdade. Com o passar dos dias, Estela começou a acordar mais cedo. Ela dobrava os próprios lençóis, varria o terraço e tentava aprender a amarrar os ramos de ervas, sem muito sucesso no início. Baltazar a observava de longe. Nunca a corrigia, apenas sorria de soslaio.
“Você tem um bom toque”, disse ele um dia. Ela parou, surpresa. Ninguém nunca havia elogiado suas mãos. Sempre diziam que eram grossas, grandes demais. Mas ali, naquela frase simples, estava o reconhecimento. Certa tarde, Estela sentou-se no banco do terraço e passou horas observando o céu mudar de cor. Era um espetáculo silencioso.
O azul se transformou em dourado, depois em lilás, e então num manto escuro salpicado de estrelas. Crianças da aldeia brincavam com aros de madeira ao longe. Uma delas, uma menina com tranças curtas, aproximou-se. “Você é a esposa do homem forte?”, perguntou inocentemente. Estela riu.
Não sou mulher de ninguém, mas ele olha para você como se fosse. Estela permaneceu em silêncio. Aquilo ecoou dentro dela como um sino antigo. No dia seguinte, algo mudou. Baltazar estava no jardim plantando raízes quando Estela se aproximou com uma cesta. Dentro dela havia roupas remendadas. Ela havia passado a tarde costurando sozinha pela primeira vez em anos. “Eu que fiz”, disse ela, mostrando-lhe a peça.
Baltazar segurou a camisa costurada. Examinou as costuras tortas, mas firmes. “Você a fez com o coração”, disse ele. Ela baixou o olhar, comovida. Naquela noite, Baltazar assou mandioca sobre as brasas. Estela preparou chá de limão com paus de canela. Sentaram-se lado a lado. Não se tocaram, mas suas respirações estavam sincronizadas. O silêncio não era mais constrangedor; era companheirismo.
Mais tarde, Estela encontrou uma pequena flor seca amarrada com um fio vermelho em seu travesseiro e, ao lado, um pedaço de papel dobrado com uma caligrafia rústica. Às vezes, a beleza não precisa de aplausos, apenas de espaço para crescer. Estela apertou o bilhete contra o peito. Sentiu lágrimas quentes escaparem. Pela primeira vez, ela não chorava de dor. Ela chorava para ser vista.
Não como a filha gorda de um duque, não como moeda de troca, mas como uma mulher, uma mulher completa. Daquele dia em diante, Estela começou a semear ao lado de Baltazar, a colher raízes, a lavar roupa no rio, a rir com as crianças. Aprendeu a fazer sabão com cinzas, a ler o céu para prever a chuva, a reconhecer o aroma das ervas e, pouco a pouco, aprendeu a se reconhecer, não como algo de que se envergonhar, mas como uma mulher que tinha um lugar no mundo, mesmo que o mundo antes lhe tivesse dito que não. A casa de pedra, tão pequena por fora, tornou-se um lar dentro dela, e
A simplicidade tornou-se sua maior riqueza. Era final de tarde quando o céu se tingiu de um dourado profundo, como se o sol, antes de se despedir, quisesse compartilhar um segredo. Estela estava recolhendo a roupa do varal, dobrando cada peça cuidadosamente. O aroma do sabonete de ervas se misturava com o cheiro de terra úmida e a brisa quente que vinha dos campos. Baltazar estava longe, ajudando um velho a consertar uma cerca caída.
Ela estava sozinha, mas não se sentia solitária. A casa, pela primeira vez, parecia vibrar com a sua presença. Enquanto guardava os tecidos no pequeno baú de madeira encostado na parede do quarto, notou algo diferente, uma fresta. A parte de trás do baú não estava alinhada com a parede. Curiosa, empurrou-a com algum esforço.
O móvel rangeu, revelando por trás dele uma pequena caixa de couro escuro e empoeirada, amarrada com um cordão vermelho. Estela hesitou. Seu coração disparou, como se soubesse que aquele objeto não era apenas um descuido, mas um fragmento de algo maior, algo que ela ainda não compreendia. Sentou-se no tapete trançado, colocou a caixa no colo e desatou o cordão com as mãos trêmulas.
Lá dentro havia um retrato, uma aquarela antiga em tons pastel, o rosto de uma jovem sorridente de cabelos escuros e olhos amendoados. A pose era serena, os lábios delicados. Ela usava um colar com uma pedra vermelha, o mesmo que Estela vira anos antes no pescoço de uma parente.
Ela virou o retrato; no verso, uma caligrafia suave, quase desbotada. Para meu amor, seu, Isadora. O mundo parou. Isadora de Alencastre, prima de Estela, filha da irmã de sua mãe. Uma mulher que havia desaparecido misteriosamente anos antes. Depois que um escândalo se espalhou pelos corredores da corte, Estela apertou o retrato contra o peito. As peças começavam a se encaixar, dolorosamente.
O jeito como Baltazar a olhou a princípio, com surpresa, com lembranças, o cuidado silencioso, o respeito quase sagrado. Ele não a via apenas como uma estranha. Ela tinha as feições de alguém que ele amara. Verdadeiramente amara. Naquela noite, ele a esperou. Sentou-se diante da lareira, com o retrato ao lado. Quando Baltazar voltou cansado, com a camisa manchada de poeira, ela não disse nada a princípio, apenas ergueu o retrato. Ele hesitou.
Seu corpo se enrijeceu, seus olhos demoraram a piscar. Sua mão hesitou antes de pegar o papel. “Onde você conseguiu isso?”, perguntou com a voz rouca. Atrás do baú, não estava escondido de mim, estava escondido do mundo. Baltazar sentou-se. O fogo dançava entre eles, projetando sombras em seus rostos. “Ela me amava, e eu a amava”, disse ele finalmente. “Ela me escolheu quando ninguém mais ousou. Eu era livre naquela época.”
Ele trabalhava como mensageiro do rei, mas o pai dele, seu tio, descobriu. Estela ouviu em silêncio. Cada palavra era ao mesmo tempo uma facada e uma carícia. Ele me mandou prender. Fui vendida como escrava antes do amanhecer. Disseram que ela foi enviada para o exterior, que morreu de febre, mas eu nunca soube a verdade.
Os olhos de Baltazar agora brilhavam, mas não de raiva, e sim de dor. E agora você, filha do mesmo sangue, com os mesmos olhos, a mesma força. Quando você chegou, pensei que fosse algum tipo de castigo ou uma ironia do destino, mas então entendi que era um novo começo. Estela mal conseguia respirar.
Por que você nunca me contou? Porque eu não queria que você pensasse que eu a via como uma sombra do passado. Você é você, mas é impossível não amar também o que me lembra você, o que me foi tirado. As palavras eram firmes; não havia manipulação nem súplica, apenas a verdade. Estela se levantou lentamente, aproximou-se dele e olhou profundamente em seus olhos.
Então, você cuidará de mim? Com a lembrança daquele que eu já amo. Ele assentiu, e com o desejo de amar novamente, se você permitir. Ela não respondeu, apenas sentou-se ao lado dele, apoiou a cabeça em seu ombro e ali, em meio a memórias, feridas e um calor que começava a crescer dentro dela, ela compreendeu.
Nem todas as mulheres são amadas primeiramente por sua beleza; algumas são amadas por sua história. E Estela sentiu, pela primeira vez, que sua história estava apenas começando. Naquela noite, o céu parecia sem estrelas, como se até os céus tivessem silenciado para ouvir o que o coração de Estela ainda não conseguia expressar em palavras.
Ela caminhava de um lado para o outro na pequena sala de estar, os pés descalços tocando o chão frio e áspero. O retrato de Isadora ainda estava sobre a mesa, iluminado apenas pela luz bruxuleante da lamparina a óleo. A chama oscilava como se pressentisse a mesma dúvida que a consumia por dentro. Estela não conseguia dormir nem entender. Baltazar a amava. Disso ela já sabia.
Mas o que a magoava era saber que ele já a amara antes, e que esse amor compartilhava o mesmo sangue que ela. Era impossível não se sentir como uma substituta, uma repetição, um eco. Ela se sentia dividida. Uma parte dela queria fugir, desaparecer, gritar. A outra queria ficar, sentir, tocar. Foi então que ele apareceu na porta, ainda com a camisa aberta do trabalho no campo, a pele suada, os olhos atentos. “Posso entrar?”, perguntou.
Ela não respondeu, mas também não disse não. Baltazar entrou devagar e sentou-se no banco de madeira do outro lado da sala. Não tentou se aproximar dela, não elevou a voz, apenas respirou fundo. O silêncio entre eles era denso, mas não vazio. Era o tipo de silêncio que grita tudo o que a boca não consegue dizer. Estela finalmente falou.
Você me vê, ou vê o que perdeu? Baltazar baixou o olhar. Depois, ergueu o rosto com firmeza. Vi o que perdi quando você chegou, mas então comecei a ver o que poderia ganhar se tivesse a coragem de sentir novamente. Ela franziu a testa. E você a teve? Ele respondeu sem hesitar: ainda não, porque não consigo sentir o que você não me permite oferecer.
As palavras foram ditas com calma, sem queixas, mas com a verdade gravada nelas. Estela aproximou-se um pouco e sentou-se no chão perto da lareira. Ambos permaneceram ali em silêncio. A chama crepitava, projetando sombras dançantes pelas paredes da casa. Então ela perguntou suavemente: “Você nunca tentou me tocar? Nem quando eu estava com febre, nem quando dormi perto de você no terraço?”
“Por quê?” Baltazar inclinou-se para a frente. Suas mãos firmes agarraram os joelhos. “Porque o amor, Dona Estela, não é fome, é tempo, é espaço, é escuta.” Ela olhou para ele como se ouvisse uma língua esquecida. “Mas eu sou seu. Fui dado a você como sua propriedade.” Baltazar fechou os olhos como se sentisse um peso no peito.
Você não é uma posse, você é uma pessoa, e eu não toco no que não me é entregue. Estela sentiu a garganta apertar porque naquele instante ela entendeu que Baltazar era livre por dentro, mesmo sendo escravizado, mesmo estando marcado. Ele amava por escolha, com limites, com dignidade. Ela, que sempre fora vista como um objeto, como punição, como excesso, agora era vista como uma mulher, inteira, completa, respeitada.
Seus olhos se encheram de lágrimas. “E se eu me render?”, sussurrou ela. Baltazar se aproximou, mas parou a poucos centímetros de distância. “Só se for por escolha própria, não por pena, não por gratidão, nem por causa do passado, mas pelo presente.” Ela estendeu a mão, trêmula, e tocou seu rosto. Sua pele quente, sua barba áspera, o cheiro de terra e madeira — um homem que viveu com honra.
“Estou com medo”, disse ela, com a voz embargada. Ele sorriu levemente. Eu também. E então suas testas se tocaram, sem beijo, sem pressa, apenas pele com pele, respiração com respiração. E naquele instante, toda a dúvida se transformou em semente. Eles ainda não eram amantes, nem uma promessa, mas eram uma possibilidade.
E para Estela, que passara a vida sendo rejeitada até por si mesma, essa era a maior forma de amor que já conhecera. No dia seguinte, o portão de ferro do Palácio Alvarado abriu-se com um som longo e profundo, como se a antiga estrutura sentisse o peso de quem estava prestes a entrar. Estela atravessou os jardins com passos firmes.
Ela vestia uma túnica que ela mesma fizera. Era simples, sim, mas repleta de simbolismo. Bordada com folhas de mandakaru e ramos de arruda. Seus cabelos, trançados com uma fita vermelha, ondulavam ao vento, como que a dizer a todos: ela retornou, mas já não é a mesma. Baltazar a seguia, postura ereta, silencioso, mas seus olhos diziam tudo: vigilância, memória e um amor contido.
A notícia do retorno de Estela espalhou-se pelos corredores como fogo em palha seca. As criadas agitavam-se, os conselheiros cochichavam. As irmãs Maria e Leonora espiavam-na da escadaria, com os lábios entreabertos. No salão principal, como sempre, o duque Álvaro aguardava. Sentado em sua cadeira alta, vestia-se de cinza escuro. Seu rosto era uma máscara de controle.
Ao lado dela estava um homem com feições semelhantes. Dom Renato, seu irmão mais velho, pai de Isadora. A aliança estava de volta. A mesa de mentiras posta mais uma vez. Estela não hesitou. “Vim recuperar o que foi enterrado por medo”, disse ela com a voz ressoando como um sino. O duque ergueu as sobrancelhas, a expressão carregada de tristeza. “O que pretende com esta exibição?” Ela tirou o retrato de Isadora de sua bolsa de couro.
Ela ergueu o papel para que todos vissem. A luz do abajur sobre a mesa principal fez o papel, amarelado pelo tempo, brilhar. “Esta é Isadora, filha do seu irmão, minha prima, a mulher que amou este homem e foi cruelmente silenciada.” Dom Renato se levantou, corando. “Isso é um absurdo, uma história velha e sem valor.” Mas Estela não se intimidou.
O amor que você destruiu tem valor. A criança que ela carregava no ventre tem valor. O homem que você aprisionou como punição por se recusar a curvar a cabeça tem valor, e a verdade tem valor. Todos permaneceram em silêncio. Ela se voltou para o pai, e você, pai, sabia de tudo. Você ajudou a vendê-lo. Você foi cúmplice.
Enquanto arrastavam Isadora para longe, você assinou documentos, selou mentiras e, anos depois, me entregou a ele como punição. Você repetiu o mesmo crime, a mesma covardia. O duque ascendeu lentamente. Eu fiz o que era necessário. Ele não era digno de uma mulher Alvarado, assim como você nunca foi digno do meu nome.
A frase cortou o ar como uma faca, mas Estela não hesitou. “Dignidade não está no nome, pai, mas nas ações. E neste palácio onde tantas mulheres foram moldadas à força, eu fui a única que escolheu se libertar.” María, sua irmã, desviou o olhar. A governanta cerrou os lábios.
Até mesmo os conselheiros pareceram se encolher diante dessa verdade serena. Estela caminhou até o centro da sala. Seus passos ecoaram no mármore frio. “Fui entregue como um objeto, mas em uma casa de lama e silêncio, encontrei respeito. Fui desprezada pelo meu corpo e amada completamente por um homem que você tentou apagar e não conseguiu ser.” Baltazar permaneceu em silêncio, mas seus olhos estavam cheios de lágrimas.
Pela primeira vez, ele estava sendo defendido, reconhecido. Dom Renato elevou a voz novamente. “E o que você quer agora, menina?” “Perdão.” Ela o encarou fixamente. “Não quero justiça. Quero que eles saibam o que fizeram. Quero que este palácio nunca mais pareça limpo enquanto finge que a história de Isadora e Baltazar foi apenas uma sombra.”
O duque Álvaro cerrou os dentes. “Você não tem o direito de levantar a voz aqui.” Estela respirou fundo, ergueu o queixo e disse: “Não tenho. Bem, ouça com atenção, padre.” Ela fez uma pausa e disse com voz firme, carregada de uma paz dolorosa: “Eu não sou uma Alvarado, e graças a Deus não preciso mais ser.” As palavras a atingiram como uma tempestade.
Ela estendeu a mão para Baltazar. Ele a acolheu com força e ternura, e juntos saíram do quarto. Lá fora, o céu estava limpo. A lua subia lentamente, testemunha de uma mulher que retornava ao lugar onde fora ferida, não para implorar, mas para provar que sobrevivera. Estela não precisava mais ser aceita. Ela já havia escolhido quem era, e essa mulher era livre.
A manhã amanheceu com um silêncio diferente. Não era o silêncio do vazio, mas o silêncio da espera. Um silêncio prenhe, prestes a ser preenchido por algo sagrado. Estela acordou com o coração acelerado. A brisa que entrava pela janela trazia o perfume das flores silvestres e o som distante dos sinos da pequena capela na aldeia vizinha.
Chegou o dia, o dia de encontrar a filha de Isadora. A revelação veio de uma velha governanta que a abordou tremendo dois dias após o confronto no palácio. Com os olhos cheios de culpa, ela confessou: “A criança não morreu. Ela foi entregue a um convento, um refúgio secreto para filhos ilegítimos da corte.”
Fica atrás das montanhas, perto do antigo moinho. Estela apertou a mão da mulher sem raiva. Havia apenas urgência e esperança. Agora, montada num pequeno cavalo ao lado de Baltazar, ela seguia por trilhas estreitas, cruzando riachos e atravessando florestas adormecidas. O caminho era sinuoso, mas seu propósito era claro.
O convento era modesto, com muros baixos de pedra, uma pequena horta e uma capela simples de madeira desgastada. Meninas corriam pelo pátio de terra batida, vestidas com roupas simples e sem cor, mas com os olhos cheios de vida. Uma mulher de véu branco, Madre Josefina, as cumprimentava com um olhar direto. A pequena Nayeli sempre soube que havia algo diferente nela.
Ela sabia que não havia nascido ali, que não pertencia àquele silêncio. Disse isso enquanto os guiava por um corredor com cheiro de pão fresco e flores secas. Estela parou em frente a uma porta de madeira. Seu coração batia tão forte que parecia ecoar pelas paredes. A porta se abriu lentamente. Lá, sentada em uma esteira, uma menina de longos cabelos castanhos soltos lia um livro antigo.
Os olhos eram de Isadora, mas o nariz, o queixo, tudo em seu rosto gritava algo que Estela já reconhecera no espelho. Era sangue, eram raízes. Nayeli chamou, com a voz trêmula. A garota olhou para cima. Sim. Estela se ajoelhou, com os olhos cheios de lágrimas. Você ainda não me conhece, mas eu a conheço desde antes de você nascer. Baltazar entrou logo em seguida.
Seu olhar se transformou ao ver a menina. Uma mistura de admiração, ternura e reverência, como alguém que encontrou um pedaço perdido da alma. A mãe observava em silêncio. “Você é minha mãe?”, perguntou Nayeli suavemente. Estela sorriu, com as mãos pressionadas contra o peito. “Não, Flor, sou sua prima, mas talvez eu possa ser sua mãe também, se você quiser.”
Nayeli olhou para Baltazar, e Estela se virou para ele. Baltazar deu um passo à frente, ajoelhou-se e, com os olhos brilhando, pegou uma das pequenas mãos da menina. “Eu sou o homem que amou sua mãe com todo o coração e que foi impedido de conhecê-la.” Nayeli olhou para os dois. Após alguns segundos de silêncio, ela esboçou um sorriso tímido, quase como uma flor desabrochando.
Então, posso ter uma família agora? Estela chorou, sem fazer qualquer esforço para esconder. Você nunca deixou de ter uma. No caminho de volta, Nayeli cavalgou um pequeno cavalo, guiado por Estela. Baltazar caminhava ao lado deles. O sol os banhava com uma luz dourada, e o caminho parecia menos acidentado. De volta à casa de pedra, Nayeli observava tudo com olhos curiosos.
Ela tocou o banco, as flores secas, os livros de Baltazar, os tecidos de Estela. “Este é o meu lar”, perguntou. “Sim, mas agora mais do que nunca”, respondeu Estela, acariciando os cabelos. Naquela noite, as três jantaram juntas. Raízes cozidas, pão de milho e chá doce. Nayeli ria de coisas simples. Contava histórias que lera nos livros do convento.
Baltazar sorriu em silêncio, com os olhos fixos nela, como se tentasse memorizar cada gesto seu. Antes de dormir, Estela contou à menina a história de sua mãe e de Sadora, sem ressentimento, apenas com amor. Nayeli adormeceu com a cabeça no colo de Estela, e Baltazar, sentado ao lado delas, acariciou suavemente os cabelos de ambas com a ternura de um homem que sabia que agora tudo fazia sentido.
Naquela noite, Estela olhou para o céu pela janela e pensou: “O amor não se resume a reencontros, mas sim a reconstruções”. E, pela primeira vez, a casa de pedra, antes silenciosa e solitária, pareceu completa; agora respirava vida. A porta de madeira fora pintada de azul claro. No pátio, flores desabrochavam ao redor de vasos feitos de abóboras esculpidas.
O aroma do sabão de ervas, feito em grandes panelas de ferro, pairava no ar. Crianças corriam rindo entre as espigas de milho. Mulheres cantavam canções antigas enquanto costuravam ao sol. A antiga casa de Baltazar era agora conhecida por todos como o abrigo de barro, e Estela era quem a mantinha viva.
Ela caminhava com um vestido de linho cru, os cabelos presos por um lenço bordado por Nayeli, os pés descalços, marcando a terra como raízes que se fixam. Seus olhos não buscavam mais aprovação; agora buscavam significado. Depois de se reencontrar com Nayeli, Estela decidiu transformar a casa em algo mais do que um simples lar. Decidiu transformá-la em um abrigo, um lugar de novos começos para jovens mulheres que haviam sido expulsas da corte por engravidarem sem permissão.
Meninas órfãs das guerras na fronteira, filhas esquecidas, viúvas sem futuro. A elas, Estela ofereceu refúgio, educação e respeito. Cada uma tinha seu papel. Algumas colhiam ervas, outras aprendiam a costurar, fiar, ler e escrever. A horta crescia a cada semana. O forno de barro, construído por Baltazar com a ajuda das mulheres mais velhas, exalava o aroma de pão fresco todas as manhãs.
Estela ensinava com gentileza e firmeza, com a voz calma de quem aprendera que o amor precisa de raízes profundas para florescer. Ela costurava mais do que tecidos; costurava histórias despedaçadas. Certa tarde, uma jovem chamada Lia, esbelta, com olhos que carregavam mais dor do que anos, aproximou-se timidamente. “Dona Estela”, disse ela, “aqui eu também posso ser alguém”.
Estela segurou suas mãos com ternura. Suas mãos eram firmes, largas e agora empunhavam autoridade sem violência. Você já é alguém; só precisa se lembrar disso. Ilía chorou porque ninguém nunca lhe dissera isso. Baltazar observava tudo atentamente, não como um líder ou um salvador, mas como um alicerce. Ele fazia o que ninguém mais via.
Ele consertou telhados, plantou árvores e fez brinquedos de madeira para Nayeli e as crianças. E todas as noites sentava-se com Estela no terraço em silêncio, um silêncio que agora significava plenitude. Nayeli cresceu como a terra que a rodeava: fértil, colorida e forte.
Ela estudava com os livros que Estela trouxera do convento. Cantava enquanto lavava roupa. Aprendeu palavras em três línguas diferentes. Chamava por Baltazar, seu amado avô, e chamava por Estela. Mamãe, os vizinhos que antes franziam a testa, agora paravam na estrada para cumprimentá-la. Alguns pediam conselhos, outros doavam sementes, barro, pão.
E todos diziam: “Você fez aqui o que os nobres nunca fizeram por nós”. Estela sorriu sem vaidade, pois agora sabia que sua nobreza não residia em seu sangue, mas no que emanava de suas mãos. No centro da casa, ela mandou erguer um mural de madeira.
Ali estavam pendurados retratos desenhados à mão de todas as mulheres que haviam passado pelo abrigo. Acima deles, esculpido por Baltazar, estava escrito: “Onde não havia espaço, criamos chão”. À noite, sob a luz suave das lâmpadas, Estela sentava-se com Nayeli para lhe contar histórias — não contos de fadas, mas histórias reais de dor, de superação de adversidades, de coragem. E a menina ouvia, com os olhos brilhando, perguntando: “Mamãe, por que as pessoas más têm tanto medo das pessoas boas?”. Estela acariciava seus cabelos e respondia: “Porque as pessoas boas mostram a elas tudo o que elas negaram a si mesmas”. Naquela noite, ao fechar os olhos na rede, ela diria: “Eu ainda estou viva”.
Tecida pelas mãos de mulheres, Estela sentiu algo novo. Não era orgulho, era pertencimento. Ela não apenas fora salva; agora estava salvando outras. E no coração de cada mulher que ali dormia, havia uma certeza silenciosa de que um dia alguém as vira, que um dia alguém acreditara nelas, e que esse alguém tinha um nome: Estela, a mulher que fora entregue como castigo e que agora era o alicerce de um novo começo. O tempo passara, não apressadamente, mas sabiamente.
Os cabelos de Estela agora tinham fios prateados que brilhavam à luz do sol como poeira estelar. Suas mãos, marcadas pelas linhas do trabalho, ainda eram firmes, mas agora sabiam quando descansar. Sua pele carregava as suaves marcas da vida, e seus olhos — ah, seus olhos — continuavam tão intensos como sempre, só que agora leves como o crepúsculo no refúgio da lama.
O céu estava tingido de rosa e dourado, com nuvens espalhadas como véus dançando ao vento. As altas árvores balançavam suas copas como se abençoassem a terra fértil onde tantas histórias haviam sido semeadas. O som do riso feminino preenchia o ar, misturado ao farfalhar das folhas secas e ao canto dos grilos. Estela estava sentada em sua cadeira de madeira trançada com palha.
Ao lado dela, Nayeli, agora uma jovem mulher, lia em voz alta para um grupo de meninas sentadas em esteiras sobre a terra compactada. O livro era antigo, de capa grossa e páginas gastas, mas as palavras em seu interior ainda ressoavam. Era dado como castigo, proferido como uma sentença, mas amado como uma rainha. Elas liam para Yelli em vozes firmes e gentis.
E na lama onde todos só viam sujeira, ela fez as flores desabrocharem. As meninas, com olhares atentos, suspiraram. Algumas apoiaram a cabeça no ombro das amigas. Outras fecharam os olhos como se quisessem guardar aquela história no coração. Nayeli fechou o livro com cuidado e sorriu para a plateia. “E vocês sabem o nome dela?” As meninas responderam em uníssono: “Dona Estela”.
Estela deu uma risada suave. O som de sua risada era como um tecido antigo costurado com fios de alegria renovada. Ela baixou os olhos por um instante, com humildade, como alguém ainda surpresa com o próprio caminho. Baltazar apareceu na porta, mais velho, mas ainda imponente, com os ombros largos e os olhos escuros e vivos, como na juventude.
Ele carregava uma tigela de frutas recém-colhidas. Nayeli correu até ele, o abraçou pela cintura e juntos foram para a cozinha preparar o jantar. Estela ficou sozinha por um instante, observando o pôr do sol. Ali, naquele terraço, ela se lembrou de tudo: o quarto onde fora humilhada, a carroça que a deixara na casa de pedra, o silêncio de Baltazar, a queda, a cura, a verdade.
A garota perdida, a mulher que escolheu se tornar o que era, e então ela sorriu. Não era um sorriso triunfante, era um sorriso de paz, de uma conquista silenciosa. Estela não havia conquistado o mundo, ela havia conquistado a si mesma, e isso era mais do que suficiente. Naquela mesma noite, sob um céu salpicado de estrelas e silêncio, Nayeli se aproximou dela com uma vela na mão e disse: “Me pediram para escolher um nome para o novo jardim.
“Posso chamar de Jardim Estela?”, perguntou ela, com os olhos cheios de lágrimas. “Só se você prometer plantar amor todos os dias.” Nayeli assentiu. Então, num gesto que se tornara parte da alma de ambas, ela pegou as mãos da mulher que a criara e sussurrou: “Você me escolheu, e é por isso que sou livre.”
Estela a abraçou forte e profundamente, como alguém que sabe que as sementes mais fortes são aquelas que crescem na lama depois da chuva. Antes de dormir, Estela caminhou até o mural de memórias. Ela tocou os retratos um a um e colocou uma nova moldura no centro. Nela estava a foto de Isadora. “Agora você também está em casa”, disse ela suavemente.
Ela voltou ao terraço, olhou para o céu, a lua brilhava intensamente, e ali, sozinha com o vento e a história, pronunciou a frase que encerrou seu próprio livro. Fui punida, mas escolhi ficar, e nisso triunfei.
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