
“Minha filha sussurrou algo que mudou para sempre a forma como eu via minha família.”
Lembro-me da primeira vez que Lina segurou sua irmãzinha nos braços.
Seus bracinhos tremiam levemente, mas seu sorriso era tão largo que pensei que suas bochechas fossem rachar. Ela olhava para o pacotinho em seu colo — para o rostinho rosado aconchegado em uma manta amarela — como se tivesse esperado a vida inteira por aquele momento.
Suas ligas vermelhas berrantes destoavam horrivelmente do cobertor, mas ela não se importava. Estava orgulhosa — orgulhosa de finalmente ser a “irmã mais velha”.
Recostei-me nos travesseiros do hospital, exausta e com dores por todo o corpo. Quatro anos só com a Lina fizeram o nosso mundo parecer pequeno e perfeito. Ela beijava minha barriga inchada todas as noites e fazia a mesma pergunta todas as manhãs: “Ela já chegou, mamãe?”
E agora, ela estava.
Talvez, pensei, as coisas fiquem ainda mais perfeitas.
Lina se inclinou para mais perto, seu nariz quase roçando o pequeno nariz da irmã. Então, com uma suavidade que não combinava com sua energia normalmente extrovertida, ela sussurrou: “Agora tenho alguém com quem guardar segredos.”
Pisquei. “Segredos?”
Ela assentiu com a cabeça, sem nunca desviar os olhos do bebê. “Como aqueles que eu escondo do papai.”

Aquelas palavras me atingiram como uma picada de alfinete no coração. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ela olhou para mim, sorriu docemente e disse: “Está tudo bem, mamãe. Ela também não conta para ninguém.”
Um arrepio estranho percorreu meu corpo.
Forcei uma risadinha. “Bem, querida, bebês ainda não falam. Que tipo de segredos você quer dizer?”
Ela apenas beijou a testa do bebê e deu de ombros. “Estou com fome. Posso comer um biscoito?”
E foi o fim — ou pelo menos, foi o que eu disse a mim mesmo.
Lina sempre teve uma imaginação fértil. Ela inventava canções sobre as nuvens serem os travesseiros de Deus e tinha um dragão invisível chamado Toffee que dormia debaixo da sua cama. “Segredos” parecia mais uma de suas fantasias.
Ainda assim… o jeito como ela disse isso ficou na minha cabeça.
Não mencionei nada ao meu marido, James, naquela noite. Ele tinha acabado de chegar de mais um longo turno no call center, com o rosto abatido e cansado. Eu não queria acrescentar “histórias estranhas de crianças” à sua lista de preocupações.
Nos dias seguintes, tudo pareceu normal. Lina ajudava a buscar fraldas, cantava canções de ninar (completamente desafinada) e tratava sua irmã, Elsie, como a boneca mais preciosa que já tivera.
E então ela parou de mencionar segredos — por um tempo.
Dois meses depois, numa tarde chuvosa de terça-feira, eu estava meio adormecida no sofá, amamentando a Elsie, quando ouvi a Lina sussurrando na sala de estar.
Seu tom de voz era baixo e sério.
“Não, papai não pode saber”, disse ela. “Essa é a regra.”
Eu paralisei.
Ela estava de costas para mim. Estava agachada ao lado de sua casa de bonecas, com duas bonecas nas mãos.
“Por que o papai não pode saber?”, perguntei de forma descontraída, tentando parecer divertida.
Ela deu um pulo — rápido demais, com muita culpa. “Nada! Só coisinhas de boneca!”
“Nossa”, brinquei, “essas bonecas têm muitas regras.”
Seus ombros delicados enrijeceram. “Eles têm que segui-los.” Então ela correu para o quarto e bateu a porta.
Naquela noite, depois que as meninas adormeceram, eu contei para James.
“Ela fica dizendo para eu não te contar nada”, eu disse baixinho.
Ele franziu a testa. “Como o quê?”
“Não sei. Segredos. Regras. Ela até disse às bonecas dela para não te contarem nada hoje.”

James deu uma risadinha, balançando a cabeça. “Ela tem quatro anos, querida. Provavelmente é por causa de biscoitos que ela come escondida ou por não escovar os dentes. Você está pensando demais.”
“Talvez”, admiti. Mas meu estômago ainda estava apertado.
Uma semana depois, eu estava lá fora regando as hortênsias quando a ouvi novamente — desta vez conversando com Elsie, que estava deitada em uma manta ao lado dela.
Sua voz era calma, séria daquele jeito estranho que as crianças às vezes ficam quando estão no seu próprio mundo.
“Lembre-se”, disse ela, “se o papai pedir, o monstro só aparece quando ele não está em casa.”
Meu coração deu um salto.
“Que monstro, Lina?”, perguntei.
Ela deu um pulo. “É brincadeira! É só uma brincadeira nossa!”
“Você disse que isso só acontece quando o papai não está aqui.”
“Sim”, disse ela, após uma pausa. “É aí que lutamos contra isso. Somos heróis.”
Forcei um sorriso, tentando parecer casual. “Qual a aparência desse monstro?”
Ela deu de ombros. “Alto. Moreno. Sem rosto. Às vezes bate nas janelas. Às vezes se esconde na cozinha.”
Engoli em seco. “Isso é… muito criativo.”
Ela deu um leve sorriso e acariciou a barriga da irmãzinha. “Elsie também vê.”
Naquela noite, mal consegui dormir. James trabalhava até tarde duas vezes por semana, e de repente aquelas noites tranquilas em casa não me pareciam mais seguras.
Quando Lina acordou na manhã seguinte, perguntei gentilmente: “Querida, você costuma ouvir barulhos quando o papai não está por perto? Ou ver sombras?”
Ela franziu a testa e começou a me contar sobre “luzes falantes” e “meias voadoras”. Então, no meio da frase, ficou em silêncio. Mudou de assunto.
Algo estava errado.
Comprei um monitor de bebê com visão noturna e o instalei no corredor. James riu quando o viu.
“Você está se transformando em um detetive”, disse ele.
Talvez eu estivesse.
Três noites depois, por volta das 23h, eu vi alguma coisa.
O corredor estava escuro. A casa estava silenciosa. Então, na tela granulada, Lina apareceu do lado de fora da porta do nosso quarto.
Ela não bateu. Não se mexeu. Ficou ali parada , olhando fixamente, por quase dez minutos. Depois, virou-se e voltou para o quarto, em silêncio.
Na manhã seguinte, perguntei: “Você teve um pesadelo ontem à noite?”
“Não”, disse ela, mastigando cereal.
“Você veio ao quarto da mamãe e do papai?”
Ela olhou para mim sem expressão. “Não. Eu fiquei na minha cama.”
Eu sabia o que tinha visto.
Naquela noite, depois que ela adormeceu, vasculhei seu quarto. Eu não tinha certeza do que estava procurando. Mas quando levantei seu travesseiro, encontrei um pedaço de papel — dobrado cuidadosamente, coberto de rabiscos de giz de cera.
O desenho me deu ânsia de vômito.
Uma figura alta, negra e sem rosto estava de pé ao lado do que parecia ser a nossa mesa de cozinha. Duas figuras pequenas — uma com suspensórios vermelhos, a outra envolta em amarelo — estavam ao lado dela.
Embaixo, rabiscado com letra trêmula: Não deixe que ele a leve.
Meu sangue gelou.
Mostrei para James. O rosto dele empalideceu. “Ela que fez isso?”
“Sim.”
Ele esfregou a têmpora. “Ela tem tido pesadelos. Deveríamos levá-la a um psicólogo infantil.”
Eu concordei. Marcamos uma consulta.
Mas nós nunca conseguimos.
Porque três dias depois, Lina desapareceu.
Era uma manhã de domingo.
Quinze minutos antes, ela estava dançando pela sala com seu patinho de pelúcia, cantando canções sem sentido. James estava trocando a fralda da Elsie. Eu estava preparando o café da manhã.
Então… silêncio.
Nenhum passo. Nenhuma risada. Nenhum som.
Percorremos todos os cômodos, chamando por ela. As portas estavam trancadas. O portão do jardim estava fechado.
Senti como se estivesse me afogando.
A polícia chegou. Drones vasculharam a mata atrás da nossa casa. Os vizinhos percorreram as ruas.
Quatro horas depois, James abriu o galpão do jardim — e a encontrou.
Sentada no chão, com Elsie no colo.
Eu nem sabia que o bebê também estava desaparecido até aquele momento.
James pegou os dois no colo, chorando.
Quando o pânico finalmente passou, sentei-me ao lado de Lina em sua cama. Minhas mãos ainda tremiam.
“Meu bem”, sussurrei, “por que você levou sua irmã para lá? Por que você se escondeu?”
Seu rostinho empalideceu. “O monstro disse que a levaria se eu não a deixasse.”
Engoli em seco. “Alguém entrou na casa?”
Ela balançou a cabeça. “Ele não precisa de portas.”
Dois dias depois, levamos ela à psicóloga.
Após uma longa consulta, o médico disse com delicadeza: “Sua filha é inteligente e imaginativa. Mas apresenta sinais de ansiedade — talvez trauma.”
James franziu a testa. “Trauma de quê?”
A médica hesitou. “Às vezes, o medo pode vir de algo sutil — gritos, tensão, até mesmo momentos que ela não consegue entender. Ela já pareceu ter medo de alguém?”
O maxilar de James se contraiu. “Não.”
Eu não tinha tanta certeza.
No dia seguinte, levei a Lina para tomar sorvete. Só nós duas.
Assim que ela terminou seu sorvete, perguntei: “Querida… esse monstro. Ele se parece com alguém que você conhece?”
Ela ficou olhando para os sapatos por um longo tempo. Então sussurrou: “Ele tem o cheiro do papai.”
Prendi a respiração. “O que você quer dizer?”
Ela cutucou o guardanapo. “Ele não se parece com o papai. Mas às vezes ele fala como ele. Tipo quando o papai bate portas ou grita com a TV.”
Senti o mundo girar. “Você tem medo do papai?”
Ela assentiu levemente. “Só quando você não está em casa.”
Naquela noite, confrontei James.
Ele chorou. Muito.
Ele me contou tudo.
Ele começou a beber quando eu estava grávida — só uma ou duas cervejas, mas o suficiente para ficar meio zonzo. Quando eu estava na casa da minha mãe ou dormindo, ele perdia a paciência. Gritava com a Lina. Segurava o pulso dela quando ela derrubava alguma coisa.
“Ela não disse nada”, ele soluçou. “Pensei que ela tivesse esquecido.”
Mas ela não tinha.
As crianças se lembram daquilo que gostaríamos que elas não lembrassem.
Ela transformou seu medo em algo que podia ver . Algo que podia combater.
Um monstro.
Naquela noite, James saiu de casa. Ele começou a fazer terapia. Lina também.

A cura não aconteceu da noite para o dia.
Durante meses, ela continuou desenhando sombras — embora seus rostos lentamente começassem a tomar forma. Ela acordava chorando com menos frequência. Seu riso começou a retornar, suave a princípio, depois genuíno.
James manteve-se sóbrio. Ele vinha todos os sábados para visitas supervisionadas. Levava livros de colorir, bolhas de sabão e muita paciência.
E uma noite, enquanto eu colocava Lina na cama, ela sussurrou: “Mamãe? Eu não preciso mais guardar segredos.”
Minha garganta se apertou. “Isso é bom, querida.”
Ela sorriu — um sorriso sonolento e sereno. “Monstros não aparecem quando você diz a verdade.”
Suas palavras me despedaçaram. E me curaram.
Porque ela tinha razão.
Às vezes, os monstros não estão escondidos debaixo da cama. Eles vivem dentro das pessoas que amamos — aquelas que precisam de ajuda, perdão e uma chance de mudar.
As crianças merecem lares sem segredos.
E aos pais… devemos a verdade a eles.
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